11/01/2013

Puglia, terra e sabores inesquecíveis... E os novos caminhos do azeite

Puglia, banhada a leste pelo Adriático e ao sul pelo Mar Jônico, com relevo e clima únicos, proporcionados pela particular posição geográfica, esta região meridional da Itália possui uma cultura alimentar riquíssima e, ousaria dizer, a culinária mais mediterrânea que já pude conhecer.
O tom de verde prata dos olivais centenários e milenares, os campos de trigo e de verduras, entremeados por montanhas onde se erguem cidades que parecem ter nascido da rocha ou do mar de profundo azul que as esculpiu em suas encostas formam um cenário que inspira o prazer de viver.

Detentora de 16% da produção mundial de azeites, atrás apenas da Andaluzia na Espanha, esta atividade econômica aqui é ancestral. As azeitonas no Império Romano eram maceradas em cavas subterrâneas, escavadas nos solos compostos por pedras calcárias e macias, onde o fio de ouro surgia na ausência da luz.  Hoje esses antigos frantoios e seus fragmentos são testemunhos de parte importante da história da civilização e tornaram-se patrimônio da humanidade.

Coratina, Ogliarola, Leccino, Peranzana são as principais variedades que dão  uma complexidade de aromas e sabores em extra virgens, verdadeiras obras-de-arte, cujo frescor, intensidade de frutado, amargo e picante harmonizam-se à perfeição com mussarelas, ricotas de ovelha, pães de grano duro, focaccias, verduras selvagens diversas, frutos-do-mar fresquíssimos, pastas tradicionais (orechietti), legumes, frutas e salames.  Sinfonia orquestrada que toca a espiritualidade até mesmo do mais inadvertido dos gastrônomos.

Fui recebido por Rossella Speranza, de naturalidade pugliesa, graduada em Economia pela Universidade de Bari, MBA em Agrobusiness pela Santa Clara University na Califórnia e coordenadora do projeto OLIVITA que promove na Itália e no mundo a cultura do azeite de oliva e da culinária mediterrânea.  Apaixonada pelo assunto como eu, atualmente vive entre Bari e o Rio de Janeiro e estamos unindo esforços com o objetivo de transmitir aos brasileiros o conhecimento sobre os extra virgens de qualidade, empreendimento que só pode ser realizado através da educação sensorial.
Além das aulas experimentais que a ESTILO GOURMET oferece harmonizando bons azeites com a culinária brasileira, Rossella executa, desde setembro de 2012 em nossa escola, aulas da cozinha mediterrânea, nas quais, mantendo as tradições de sua terra natal no preparo alimentar, ensina como os sabores e aromas originais dos ingredientes devem ser realçados e não transformados, proporcionando uma experiência prazerosa aos participantes a partir de técnicas simples de fácil assimilação.

Após essa longa viagem entre a Espanha, Portugal e Itália que hoje se encerra, ocasião criada para aprofundar meus estudos e onde também testemunhei a produção nos três principais países fornecedores dos azeites que consumimos, tornou-se evidente para mim que o caminho dos extra virgens vive um grande momento de aperfeiçoamento qualitativo.
Desde a Antiguidade, sua utilização era muito mais ampla: da iluminação, lubrificação, confecção de tecidos, cosméticos, medicamento até a alimentação. Com tamanha importância para a civilização, o azeite é possuidor de significados religiosos, mitológicos e grande simbologia.  Pelos antigos métodos de extração, muitos deles mantidos tradicionalmente até a década de 80 do século passado, elaborava-se um óleo, onde a qualidade sensorial não era prioridade.
Foi somente a partir da década de 90, mais precisamente em 1991, através de Instrução Normativa publicada pelo COI, que foram instituídos os painéis de degustação, com parâmetros bem estabelecidos sobre os valores organolépticos, classificando os azeites com critérios definidos (ler artigo http://estilogourmetazeite.blogspot.com.br/2012/12/o-2-congresso-internacional-de-analise.html).
Com o desenvolvimento de novas tecnologias nos métodos de extração e inúmeras pesquisas nas áreas químicas, farmacêuticas e agronômicas, tornou-se possível  hoje elaborá-los com o máximo do potencial aromático e gustativo.  Atualmente, quando a maior parte de seu uso é para a alimentação, os 21 anos passados da instituição dos novos parâmetros sensoriais representam ainda um curto percurso para a mudança da compreensão sobre o conceito de qualidade, não só da parte do consumidor, como de toda a cadeia que o elabora e comercializa.
Profissionais como minha mestra Brígida Jimenez, Francisco Pavão, Ana Carrilho, Nicola Perrucci  , Alfredo Marasciulo e Marino Giorgetti, para citar apenas alguns, além de Marco Oreggia, que há quatro anos elabora o guia Flos Olei com os melhores azeites do mundo, estão à frente dos processos educacionais e empreendem atualmente grandes esforços para a mudança de mentalidade de toda essa rede, do produtor ao consumidor.
Não somos só nós brasileiros que devemos aprender a apreciar e discernir sobre os bons extra virgens.   Azeites com aromas de ranço, fermentado e tantos outros defeitos fazem igualmente parte da memória sensorial dos povos do Mediterrâneo que há milhares de anos os produzem e esta transformação, há pouco tempo em curso, está agora influenciando o mercado do Brasil, país emergente no consumo.
Reitero portanto a crença sobre a importância da transmissão do conhecimento sobre o bom e o conceito de qualidade, sobre a cadeia que nos conecta, desde a produção alimentar, até o momento da escolha do ingrediente feita pelo consumidor.  Valorizar a preparação do alimento e as percepções que temos quando comemos, ato maior em que nutrimos nosso corpo e mantemos a vida, torna-se essencial.
No mundo industrializado e veloz vivemos a mais absoluta alienação desses processos e ao não dar importância em discernir sobre o bom e a qualidade, não nos damos conta que abrimos mão do prazer, protagonizando um tempo de grande privação sensorial.
Inspiro-me nas palavras do mestre Carlo Petrini, quando nos diz que o prazer é acompanhado indissoluvelmente do conhecimento organoléptico de um produto, seja in natura, seja quando já transformado, o que nos leva ao conhecimento de nós mesmos e de nossa própria sensibilidade, que pode e deve ser comunicada e compartilhada com os outros. 

Continua ele: "Conhecer o bom tendo como objetivo a recuperação de nossas percepções sensoriais como ato fundamental de um novo modo de pensar, de agir ou de reagir, o respeito a outras culturas (ato de reconhecer o bom) de modo a se fazer comunicar(...)" Resumo eu: dialogar pela genuinidade da vida, criando uma rede não só de sabor, mas igualmente de grande saber.

Como docente de gastronomia, Ecochef do Instituto Maniva e membro do Slow Food Internacional, ao especializar-me no estudo do azeite, seguindo minha intuição e paixão e ao divulgar tão rica cultura, percebo o quanto esse ancestral alimento tornou-se  para mim o instrumento da reconstrução de um novo mundo, onde o prazer de se alimentar deve ser resgatado como um direito democrático indissociável da vida.
Através desse percurso, compartilhando nossa sensibilidade, comunicando nossas emoçōes, estou certo que a oliveira e seus frutos, símbolo da paz e da unidade entre os povos exercerá em plenitude seu ancestral significado.


Polignano a Mare, esculpida pelo mar azul

Rossella Speranza e eu em ancestral frantoio escavado em pedra

Oliveira milenar e sua descendência

A pomba de Noé e o ramo de oliveira, símbolo de paz e unidade entre os povos